Resenha: Animal Extremo de Prisca Agustoni
Por André Merez
Em
sua primeira parte, In Vitro, o livro de poemas Animal Extremo de Prisca Agustoni parece evocar o silêncio da contemplação presente ‘no branco da
folha’ e ‘na rosa exsicada no vaso sobre a cômoda’. Como se
todo o barulho de uma cidade vista de cima pudesse provisoriamente se
calar e dar lugar ao poema. A caverna de vidro que prende esse animal
extremo também o permite ver, e o permite reconhecer-se e
reconhecer do lado de fora ‘uma paisagem imóvel pregada no ar’.
Um equilíbrio entre a vertigem que o engasgo do mundo causa ao poeta e
a possibilidade de um refúgio na quietude de horas reclusas. No entanto, essa é apenas a impressão inicial que a leitura desse livro parece causar no leitor. A cada avanço e a cada movimento desse animal, algo inesperado acontece e ele, aos poucos, vai se deixando ver e se revelando.
As
estruturas do prédio, essa jaula de vidro, e sua concretude aparecem na
segunda seção do livro, Flores de Betume. A selva de asfalto surge como uma espécie de cenário ou pano de fundo para as ações que
compõem o cotidiano, suas sutilezas e seus absurdos. Desde o vizinho
que molha as plantas no andar de cima até o som das sirenes de
emergência que uivam intermitentes no prédio em frente, tudo
aparece eivado de um sentimento de fusão entre a matéria concreta
do prédio e a matéria humana da poesia: "As vozes, essas flores
amarelas fincadas no cinza”. A frialdade das paredes e a massa de
concreto que sustenta essa estrutura, não conseguem desumanizar esse
ambiente, ao contrário, tudo é carregado de uma relação íntima
entre essas duas forças que coexistem. Parece haver vida na estrutura só aparentemente acinzentada dos poemas, parece correr um sangue quente e rubro nas tubulações por trás das paredes.
A
terceira parte do livro, Jardins Suspensos, utiliza-se da prosa
poética como um recurso extremo e necessário para desvelar, sem
muito alarde, a intimidade dos habitantes das outras cavernas, esses outros
animais extremos. No belíssimo texto intitulado 401, a intimidade
das novas vizinhas de andar é prevista e suposta com sutileza e
sensibilidade: “Se prestares atenção, podes capturar a batida de
seus corações. Parecem raios de sol, os rumores do outro lado que
cruzam a parede e penetram debaixo do teu cobertor, aquecem a
escuridão, tua orelha à espreita que quer e não quer escutá-las.”
Seguem-se os números dos apartamentos e, a cada virar de página,
nos deparamos com “o quarto de Van Gogh”, “uma ameaça ardente
que sobe pelo vão da escada” ou os “galhos frondosos da
memória”.
Em
Os cactos Prisca nos conduz a uma intimidade que permite ouvir
“as paredes [que] respiram” e “as tábuas que rangem sob os
[nossos] pés”. E como intrusos vemos, agora desvelada ao
contrário, a solidão do animal extremo que parece ser invadida.
Como em Schopenhauer, a “solidão é a sorte de todos os espíritos
excepcionais” e o animal extremo e solitário refugia-se nela, já
que “A floresta está densa e impenetrável esta noite”.
Em O cardume o animal sai da caverna e se lança nos meandros do
lado de fora da caixa de vidro e “a rua bate com força no rosto”
do animal extremo. Os paradeiros e os roteiros da cidade, entre a
poeira e o espanto, vão-se revelando múltiplos e impalpáveis. Tudo
parece construir-se no difícil terreno da relação entre o eu e o
mundo, o íntimo e o público, e o eu-lírico esbarra na rua, penetra
suas cavidades percebe suas contrariedades e, ao mesmo tempo, se
solidariza e se indigna com seus equívocos; uma fruta jogada na
calçada e a esmola que resvala na memória.
O
que há em Metamorfoses, última parte do livro, é o que está
além das ambientações até agora exploradas pela poeta. Aquilo que
pode estar muitos palmos acima de tudo que até aqui o livro procurou
utilizar como matéria criativa. “A ossatura do horizonte”, “o
esqueleto do monstro”, tudo o que a grande poesia de Prisca
Agustoni tem a oferecer ao leitor, mais que uma experiência
estética, o resultado em versos de uma experiência que se constrói
na observância do mundo como ele tem sido, na vida como ela pode ser. Assim mesmo, um voo estranho, um voo “com
muitas asas por dentro”.
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Foto de Wir Caetano |
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A Revista POESIA AVULSA é editada e organizada pelo poeta André Merez [+ informações ]
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Bela e instigante resenha. Ai que vontade que dá. Há algum tempo que tem me chamado a atenção e, depois deste texto, vou já atrás!
ResponderExcluirOlá, Rosana!
ExcluirObrigado pela leitura e pelo comentário, querida!
O seu 'Caderno de Intermitências' está aqui na minha fila de leituras. Já dei uma olhada rápida e em breve vou me debruçar sobre ele devidamente.
Um grande abraço!